NINGUÉM MORRE NA VÉSPERA

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São 2h45min. Hora de levantar. Dormi relativamente bem as últimas quatro horas. Considerando que estou a 5.300 metros de altitude, acampado sobre uma geleira e que a temperatura aqui dentro da barraca está -10 oC, não tenho do que reclamar.

Nunca havia acampado sobre o gelo. É para poucos. Fora o pequeno retângulo onde está meu isolante térmico com o saco de dormir por cima, qualquer outra parte dos 3 m2 que compõem o chão da barraca dói a mão só de encostar. E para completar, as paredes internas desse meu iglú estão forradas de uma película de gelo, vapor do meu corpo que se condensou e congelou.

Levantei. Me paramentei todo: balaclava, óculos, três camadas de roupa, luvas, botas duplas, crampons, capacete, lanterna, cadeirinha. Tomei uma caneca de café solúvel, consegui comer duas colheradas de granola com iogurte liofilizados e estava pronto para partir para o cume.

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Eram quatro da manhã quando saímos. Na minha corda estavam também César à minha frente, Fred atrás de mim e Marcel atrás dele. Sete metros de corda interligava cada um de nós quatro ao companheiro mais próximo.

Fazia um silêncio pesado – não ventava – apenas entrecortado pelo ruído de nossos passos cramponando o gelo macio do glaciar. Uma lua minguante acompanhada das estrelas mais brilhantes jogava um manto  prata azulado sobre o chão que pisávamos. Não havia sequer uma nuvem no céu. O cenário era frio, leitoso, surreal, marciano talvez.

Progredíamos lentamente, em ritmo regular. Éramos quatro almas unidas por uma corda subindo o glaciar. Sentia-me só, uma insignificância consciente se arrastando montanha acima.

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Sabia que a qualquer momento poderia ser engolido por uma greta. No dia anterior, dois escaladores mexicanos e dois peruanos morreram numa avalanche na montanha ao lado. Agora mesmo isso poderia acontecer aqui. Em uma região de grande instabilidade sísmica como essa, qualquer pequena acomodação do terreno teria repercussões desastrosas para nós quatro. Minha vida estava nas mão de meus três companheiros de corda. E a deles nas minhas. Mas, curiosamente, desdenhei da morte o tempo todo. Tinha certeza que atravessaria aquela noite. Ninguém morre na véspera.

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Havia mais com o que me preocupar. Tinha que manter o ritmo das passadas, montanha acima, montanha acima, montanha acima, apesar do frio, do ar cada vez mais rarefeito, do cansaço, da respiração mais que ofegante.

Cinco horas da manhã e eu me sentia menor que o mosquito no no cocô do cavalo do bandido. Solitário num cenário inóspito e surreal, frente a montanhas e glaciares que mal enxergava, e cujos ciclos de existência, comparados ao meu, eram eternidades. Abandonado à própria sorte numa região remota e desabitada de um planeta pequeno orbitando uma estrela modesta em uma galáxia perdida entre centenas de bilhões de outras visíveis em um universo em expansão.

“E no entanto, trago em mim todos os sonhos do mundo.”

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Me lembrei que planejei esse momento lá em Barão Geraldo, seis meses atrás. Dia após dia, desde então, treinei músculos e nervos para estar aqui; cada movimento do piolet, cada passada do crampon foram planejadas para eu chegar 5 mil metros acima da casa onde vivo, com temperatura 40 oC abaixo daquela no quarto onde durmo, com a metade da pressão de O2 do ar que respiro em Campinas.

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“E no entanto, ela se move.”

A rotação desse planeta pequeno fez transbordar sobre a montanha enfim – lenta, dramática e majestosamente – a luz da estrela modesta que aqueles que pisavam aqui sete séculos antes de mim chamavam de Inti, o deus da luz e da vida. São seis horas da manhã. Com a chegada do sol, tudo mudou. Renovava-se o ciclo de luz, vida e energia naquela manhã de 23 de julho. Tonto de admiração e cansaço, comecei a identificar ao meu redor, quase ao alcance das mãos, a silhueta das montanhas com as quais sonhei cada noite dos últimos meses. Estava ali o Cerro Artensoraju à minha esquerda. Os quatro Huandoys apareceram à minha direita. Consegui divisar o Nevado Huascaran Norte à minha direita, um pouco atrás o Huascaran Sul, a maior montanha do Peru. Identifiquei a Pirâmide Garcilaso à minha esquerda; atrás dela o Cerro Santa Cruz; ao seu lado o Quitaraju, à minha direita mais à frente, o Chopicalqui; atrás dele o Nevado Contrahierbas; à minha esquerda o Nevado Alpamayo, a montanha mais linda da Terra! E à sua frente o Tauliraju. Para além do cume do Cerro Pisco, nosso destino, conseguia ainda ver os nevados Yanapacha e Chacraraju.

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Enfim, com a luz do sol identifiquei uma a uma as monumentais montanhas que surgiam ao meu lado. Entendi o caminho que fazia. Meu corpo já não se cansava. Meu corpo já não doía. Escalava com os olhos e a mente, uma a uma, todas aquelas montanhas. Feito um tapete voador, me deslocava para onde meus olhos miravam.

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Será que o sol nasceu sem a ajuda de Deus? Ou quem sabe as centenas de bilhões de galáxias existentes, cada uma delas com trilhões de sóis nascendo sobre seus inúmeros planetas, e se expandindo numa dança pagã há 13 bilhões de anos por um espaço que não consigo imaginar, tudo isso junto não seja Deus ele próprio? Muito frio para raciocinar sobre isso agora, pensei.

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Na minha cabeça tem uma rádio. Uma rádio que toca música sem o meu controle, em horários os mais inusitados e, às vezes, inoportunos. É sério! Nessa hora, enquanto Inti nascia, começou a tocar os minutos finais do Pássaro de Fogo (Firebird), de Stravinsky.

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Acho que ele não sabia nada do povo Inca que habitava por aqui sete séculos atrás. Mas certamente Inti iluminava Stravinsky quando compunha Firebird. Ver a luz do sol desvelando as montanhas e ouvir Firebird são duas vivências de um mesmo processo. Só pode ser. Meu rádio não erra.

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Às sete horas, encordado, fisicamente bem, emocionalmente esgotado, cheguei ao cume do Cerro Pisco. Me abracei a Fred, Marcel e César por alguns minutos. Descansamos um pouco antes de iniciar a longa volta.

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