CHILE

Entramos no Chile, vindos de San Antônio de los Cobres, pelo Paso de Sico, fronteira um pouco acima de quatro mil metros de altitude. Caminho de rípia. Não há controle aduaneiro do lado chileno. Apenas uma placa cruzando a estrada nos atesta que entramos em outro país. A paisagem continua a mesma. Estamos no deserto do Atacama, o lugar mais seco do planeta, onde o solo é praticamente estéril devido à baixíssima umidade. Dentro da ONÇA, o higrômetro marcava 10% de umidade relativa do ar. Do altiplano sobressaem montanhas e vulcões por todos os lados. O solo, quase totalmente descoberto, tem vários tons de vermelho, amarelo e branco. Grandes manchas – formadas por sal, areia e lava vulcânica – se estendem por quilômetros, como grandes planícies brancas – os salares. O céu é azul turqueza forte. A vegetação se limita a poucos arbustos raquíticos e teimosos, espalhados aleatoriamente na terra árida. Viajamos em altitudes de 4 a 4,5 mil metros sob um sol forte e vento frio.

Igreja no Deserto de Atacama

Essa inóspita região foi um centro estratégico para a economia dos países andinos no passado. Além de possuir importantes jazidas de cobre, extraía-se salitre dessas montanhas, uma mistura de nitrato de sódio e nitrato de potássio. Mistura criada no inferno, disse uma vez o escritor José Saramargo, tão dura era a vida dos milhares de homens, chilenos, argentinos, bolivianos e peruanos que aqui trabalhavam, onde a temperatura chegava a variar de 30 a -30 graus centígrados em um mesmo dia. O nitrato era matéria prima para a fabricação de fertilizantes e explosivos, fazendo crescer também o interesse de potências européias na região. No final do século XIX o Chile era o único país produtor de salitre em todo o mundo, e esta era sua principal fonte de divisas.

Começamos a descer. Margeamos longitudinalmente por dezenas de quilômetros o Salar de Atacama, imensa mancha branca no deserto, até chegarmos a San Pedro de Atacama, a 2400 metros de altitude, na Província de Antofagasta.

No final do século XIX, num conflito conhecido como Guerra do Pacífico, o Chile, país com melhor potencial econômico e bélico da região, financiado pela Inglaterra, atacou por terra e por mar o Peru e a Bolívia, com quem disputava o controle da região. O Peru perdeu parte do sul do seu território, a região de Tarapacá, no conflito para o Chile. A Bolívia perdeu a região de Antofagasta, sua única saída para o mar. Para os bolivianos, até hoje essa é uma questão dolorosa. Muitos dos problemas do país são atribuídos à falta de acesso ao mar. Nas últimas décadas, todos os presidentes bolivianos, inclusive Evo Morales, tiveram em suas plataformas políticas a retomada de negociações com o Chile para reaver o território perdido, objetivo esse inscrito na Constituição do país.

Flamingos no Deserto de Atacama

San Pedro é um oásis, em vários sentidos. A canalização de água que escorre de montanhas vizinhas transformou a terra esturricada em solo relativamente fértil. Numa cidade onde não há registro de chuva no último século, árvores de médio porte e arbustos estão presentes por todo lado. A cidade é uma Babel, com mochileiros falando em idiomas de todos os cantos do mundo, andando em procissão pelas suas ruas estreitas. Embora o ambiente geográfico seja parecido com o da cidade de Humahuaca, onde passamos alguns dias muito tranquilos, aqui o ritmo é de um acampamento base, apoiando andinistas em busca de aventuras na região. E aventura é o que não falta. Picos escaláveis em vários níveis de dificuldade, cadeias de montanhas com vulcões de água quente, vales com paisagens lunares, povoados indígenas isolados… poderíamos ter ficado aqui algumas semanas. Mas a viagem tem que continuar e seguimos.

Estíma-se que havia 40 mil trabalhadores nas minas de salitre nesta região, no início do século XX, dos quais 13 mil eram peruanos, bolivianos e argentinos. Esses trabalhadores moravam em abrigos das mineradoras, cujas condições de saneamento eram deploráveis. Àquela época, as mineradoras pagavam seus trabalhadores mensalmente com um punhado de fichas emitidas por elas mesmas, que só podiam ser descontadas em seus próprios armazéns e vendas.

Ruta Panamericana

Seguimos rumo norte. O deserto ao norte é ainda mais desolador. A paisagem achata, não se vêm mais as montanhas. Guiamos por centenas de quilômetros pela Ruta Panamericana ladeados por areia e pedras. Vento forte lateral.

Em 10 de dezembro de 1907 eclodiu uma greve na salitrera de San Lorenzo, que logo se espalhou para a salitrera de Alto San Antônio e várias outras na região de San Pedro de Atacama. Foi apelidada de a greve dos “18 pence” (18 centavos de libra esterlina) pois essa era a principal reivindicação dos grevistas: já que as mineradoras recebiam em libras pelo salitre bruto que eles extraíam, nada mais justo que pagarem a eles também em libras, e não em fichas.

De repente, uma surpresa. A Ruta Panamericana cruza o Rio Loa, no pequeno povoado de Quillagua, província de Tocopilla. Aqui o rio forma um oásis, esse sem o borburinho turístico de San Pedro de Atacama. Se para nós não é comum cruzar um deserto; cruzar um oásis no deserto foi uma experiência singular. Paramos, respiramos fundo, parecia que sentíamos a umidade entrando por todos os poros. Árvores de médio porte, arbustos, capim, hortaliças cultivadas, muitos animais, burros, cavalos, llamas, cachorros. Conversamos com moradores locais. Disseram que uma mineradora quilômetros acima está poluindo e desviando a água do rio. A única fonte de vida da cidade está sendo roubada. No Chile a água é propriedade privada, e não um recurso público, e a mineradora é a dona da água…Um morador se recorda que nos últimos quarenta anos, raramente choveu. Isto é, raramente fez que ía chover. A nuvem vertia água mas essa se evaporava antes de chegar ao solo. Bebemos água e partimos. Sempre para o norte, após 450 quilômetros de estrada, e ainda no deserto. Chegamos a Pica, uma cidade pequena e surpreendente, ao pé da cordilheira, 1.350 metros de altitude, na província de Iquique, região de Tarapacá. Pica tem 250 hectares irrigados com água que corre das montanhas, onde se planta laranja, limão, manga e goiaba. A cidade não parece ser pobre, mas isolada. Há muitas casas coloridas, com pomares nos quintais. A escola é grande e bem conservada. À noite, moradores com notebooks circulavam pela praça bem cuidada. A praça é wi-fi zone, gratuita. Alugamos por um dia uma pequena casa mobiliada, pelo preço de um hotel barato. Indicação de um morador na praça wi-fi. Passamos num supermercado e garantimos um bom vinho Tarapacá, não apenas nacional, mas também local. Preparamos um jantar como há muito não fazíamos e comemos num simpático jardim de inverno, virado para o quintal grande. A cidade adormeceu cedo e nós dormimos também. Um detalhe importante: a porta da casa não tem chave. Basta encostar. Calle Cordel, 270. Esse foi nosso endereço em Pica.

Em 18 de dezembro de 1907 milhares de trabalhadores em greve marcharam para Iquique, portavam bandeiras do Chile, Bolívia, Peru, Argentina. Queriam que o governo da província mediasse as negociações com as mineradoras. Os trabalhadores se alojaram na Escuela Domingos de Santa Maria, nos arredores de Iquique.

Ao deixarmos nossa casa alugada no dia seguinte, descobrimos que Pica é um balneário que atrai moradores da região. Encontramos várias piscinas públicas cheias de gente se divertindo. Ônibus com banhistas circulam pelas ruas. No deserto, brincar com água é a maior diversão.

Em resposta aos mineiros grevistas, o governo da província, com respaldo do governo central, cercou a escola em 21 de dezembro de 1907 e ordenou que todos retornassem aos seus postos de trabalho. Não foram atendidos. O comandante da tropa então liberou o massacre. Primeiramente, a escola foi bombardeada com conhões. Depois, a tropa invadiu e metralhou os sobreviventes. Mulheres e crianças não foram poupadas. Mais de 3 mil pessoas foram assassinadas cruelmente naquela tarde. O governo ordenou não emitir atestado de óbitos. Os mortos foram enterrados em valas comuns e essa história não foi contada nas escolas chilenas.

Calama

Seguimos para Arica, situada no extremo norte do Chile, na fronteira com o Peru. Sempre descendo, finalmente deixamos o deserto para trás até avistar o Pacífico pela primeira vez nesta viagem. Arica é uma cidade portuária, zona franca, cerca de 200 mil habitantes, grande para os padrões da região. Tem um comércio popular intenso, com sacoleiros por todos os lados, ruas estreitas, carros e gente misturados na rua. De repente: um susto. Um menino, saído do nada, atravessou a frente da ONÇA. Estávamos a uns 20 quilômetros por hora e acertamos em cheio o garoto, que se espatifou no meio da rua. Juntou uma pequena multidão em torno da ONÇA. Mas todos parecem que entenderam, inclusive o menino, que foi um acidente. Se levantou dizendo que estava bem. Quisemos levá-lo a um pronto-socorro, mas ele se recusou e sumiu no meio da multidão. Um transeunte disse que o garoto não ía fazer queixa alguma, que tudo estava bem e que o melhor era irmos embora. Partimos.

Em 2007, quando a matança completou 100 anos, Michelle Bechelet, presidente chilena, ordenou que os corpos fossem exumados e enterrados em um memorial contruído no lugar do crime.

Passamos alguns dias acampados numa praia nos arredores de Arica, explorando à pé a região. Depois de tanto deserto, ver o sol se por nesse mundo de água e respirar oxigênio farto a beira mar era tudo o que queríamos. E com as ondas frias do Pacífico quebrando em nossos pés, entre um pescado frito e uma cerveja gelada, terminamos a etapa chilena de nossa viagem.

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