COSTA RICA
Como de costume, cruzar a fronteira foi uma tarefa difícil, um exercício de paciência e perseverança. Estávamos em Paso Canoa, cidade fronteiriça entre o Panamá e a Costa Rica. Uma pequena multidão de pessoas se aglomerava do lado panamenho, tentando atravessar. Ônibus chegavam a todo momento. Carros, motos, taxis, pessoas vindas a pé, chegando, chegando, chegando. Dezenas, talvez centenas de caminhões faziam fila para inspeção. Um garoto veio conversar e não se desgrudou de nós um só minuto nas mais de duas horas que passamos na fronteira. O menino nos levou de guichê em guichê no tortuoso labirinto do processo de saída/entrada. Ía nos instruindo enquanto carimbávamos os passaportes, preenchíamos guias de saída e de entrada da ONÇA, comprávamos selos de diversas naturezas, pagávamos impostos municipais, estaduais, federais. Depois, chamou o agente da Aduana, o agente do Ministério da Agricultura, o agente da polícia anti-tráfico e muitos outros agenes disso e daquilo para diferentes verificações na ONÇA. Todos conheciam o menino. Os fiscais, de verdade, não fiscalizavam nada. Ouviam o menino dizer que podia nos liberar, davam uma olhada no carro, meio de longe, trocavam algumas palavras conosco e assinavam nossos papéis. Por fim, o menino ainda nos levou a um lugar para a ONÇA receber uma ducha de algum suposto pesticida. O garoto era bem humorado e muito falante. Nos divertimos com ele. Contou que esse era seu trabalho. Morava alí perto, do lado panamenho, não tinha pai, passava fome, e, para ajudar em casa, todo dia ía muito cedo para a fronteira passar os gringos de um lado para o outro. Não é fácil seu ofício, disse. Tem muita concorrência. Muito garoto e pouco gringo para atravessar. No final do processo, depois do último carimbo e último selo, veio a fatura: dez dólares. Um roubo pedir pagamento por algo, a rigor, ilegal? Uma ninharia frente ao tempo que ele nos economizou? Errado estimular o subemprego de uma criança que deveria estar na escola? Correto ajudar alguém necessitado? Não soubemos avaliar. Pagamos o menino e fomos embora felizes por deixar aquele lugar e seguir viagem.
Logo de início, algumas coisas chamaram a atenção na Costa Rica. As estradas pioraram muito, buracos, uma quantidade enorme de caminhões, falta de acostamento. Apesar disso, a paisagem compensava. A partir de Paso Canoa, rodamos duzentos e cinquenta quilômetros atravessando florestas tropicais primárias, densas e exuberantes. Trinta e cinco porcento do território da Costa Rica é contituído por Parques Nacionais. Chegamos a Quepos, um destino popular no litoral sul, e logo fomos para o Parque Nacional Manoel António, uma reserva de mata tropical à beira do Pacífico. Passamos dois dias acampados no parque, numa praia cheia de coqueiros, árvores frondosas e muitas pedras vulcânicas. Fez sol forte durante os dias e lua cheia durante as noites. Nosso plano era ficar ali uma semana, mas tínhamos uma missão difícil pela frente.
Para subir de carro para os Estados Unidos, não há como não cruzar Honduras, pois esse país ocupa uma faixa contínua de terra do Atlântico ao Pacífico. Até aí, tudo bem. Cruzar países de carro tem sido nossa especialidade nas últimas semanas. Mas, o presidente hondurenho foi deposto num golpe militar poucos meses antes de sairmos de Campinas. Sem problemas. Golpes de estado não são eventos raros na América Latina. Mas o que complicou nossa vida foi que o presidente deposto, que estava no exílio, resolveu de repente voltar para Honduras durante a nossa viagem, e, deposto que estava, foi se abrigar justamente na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, capital do país. Consequentemente, para retaliar o apoio brasileiro ao presidente deposto, o governo golpista passou a exigir visto de entrada no país para brasileiros. Estávamos na Costa Rica quando soubemos disso. Evidentemente, não tínhamos esse visto e tínhamos que cumprir essa exigência se quiséssemos seguir viagem. Deixamos prematuramente o Parque Nacional Manuel António e fomos para São José, capital da Costa Rica, procurar a embaixada hondurenha para solicitar o visto.
A embaixada estava às moscas quando lá chegamos. Apenas uma funcionária informava que após o golpe os funcionários cortaram relações com o governo. Se alguém nos contasse não acreditaríamos. Um grupo de funcionários especializados em manter relações com outros países cortou relações com o seu próprio país!!! Incrível. A América Central é realmente surpreendente. Quando os diplomatas renunciam, quem faz diplomacia? Estávamos desolados. Nossa viagem corria o risco de terminar ali, na borda de Honduras. O que fazer?
Fomos então buscar uma luz na embaixada brasileira na Costa Rica. Falamos diretamente com o embaixador, figura simpática que nos atendeu muito bem. Ele nos disse que as embaixadas hondurenhas de toda a América Central estavam paralisadas porque não reconheciam o governo golpista. A situação era crítica. Apenas a embaixada hondurenha em El Salvador estava funcionando normalmente porque, por razões fortuítas, o embaixador hondurenho lá era amigo do presidente golpista. Então, se havia algum lugar onde poderíamos obter o visto, este lugar era El Salvador. Só que El Salvador fica DEPOIS de Honduras. Nos imaginamos chegando na fronteira com Honduras…
– Buenos dias, amigos. Passaporte si?
– Acá estan, señor.
– Ah, Brasileños, e donde está el bisto de entrada?
– No lo tenemos, señor. Mas estamos indo aorita para El Salvador buscá-lo. Depues volveremos aca e entraremos nuevamente com los bistos, puede ser?
– Carajo! Están se rindo de mi?
Pois é, para pegar o visto tínhamos antes que cruzar Honduras. Para cruzar Honduras tínhamos antes que pegar o visto. Isto é o que chamamos de uma insolubilidade político-geográfica. Só se passássemos por cima de Honduras. E foi isso que fizemos. Pela segunda vez nesta viagem nos separamos da ONÇA. Ela ficou no estacionamento do hotel em San José e nós pegamos um avião para San Salvador, capital de El Salvador.