PANAMÁ
Voamos de Quito para a Cidade do Panamá, onde chegamos tarde da noite. Não havia transporte público para o centro da cidade, que fica 30 quilômetros distante. Não havia informações. Conversamos com um policial que nos indicou um senhor para nos levar para o centro em seu próprio carro, por 30 dólares. Oferecemos 25 e ele aceitou. Viemos por caminhos escuros, periferia brava da cidade. Por alguns momentos pensamos que estávamos sendo sequestrados, levados para um terreno baldio, onde o pior estava para acontecer. Foi um enorme susto. Juramos que nunca mais na vida tomaríamos um taxi pirata. O motorista corria feito louco e não falava uma só palavra. Estávamos totalmente em suas mãos. Apenas o rádio do carro quebrava o silêncio com músicas caribenhas entrecortadas por notícias policiais. Depois de uma hora de loucuras no trânsito, finalmente chegamos ao nosso hotel. No dia seguinte, logo cedo, iniciamos os trâmites para a retirada da ONÇA do Puerto Balboa, onde ela havia chegado há um dia.
Duas coisas nos chamaram a atenção na Cidade do Panamá. A primeira é a insegurança. Não fomos vítimas nem presenciamos nenhum ato de violência. Mas, parece que ela está ali, espreitando na próxima esquina. Há soldados armados até os dentes andando por todo lugar. As rádios noticiam crimes a todo momento. No hotel, os funcionários nos recomendam muito cuidado nas ruas, sair apenas com o mínimo necessário. Andar à noite, desaconselhado. Há seguranças particulares com escopetas nas portas dos supermercados. Os motoristas de taxi apontam lugares proibidos. Balas perdidas… Não fosse tudo isso muito familiar a nós, campineiros, estaríamos em pânico. Outra coisa que chama a atenção é o jeitão “Torre de Babel” que esse lugar tem. Para a sua sorte e o seu azar, o Panamá separa por apenas algumas dezenas de quilômetros os dois oceanos mais importantes do planeta. Por isso esse lugar atraiu tanto interesse e tanta gente desde o século XVI. Talvez a grande característica aqui seja a falta de característica. Africanos, asiáticos, europeus, americanos, todos deixaram suas marcas. E o que é de todos não é de ninguém.
A cidade é cheia de contrastes, como várias na América Latina. De um lado, a miséria, o desemprego, os cortiços, a violência. De outro, a sofisticação dos centros comerciais, dos shoppings centers refinadíssimos, dos prédios altos e imponentes da orla do Pacífico. Também há um ar nostálgico, caribenho, colorido nas ruas e no centro antigo, que lembra os anos 50. Encantador!
Conhecemos no sul da cidade as ruínas de Panamá Viejo, precursora da Cidade do Panamá, destruída por um ataque pirata no século XVI. Foi abandonada e a vida recomeçou alguns quilômetros ao norte.
É inverno no Panamá, o que significa chuvas tropicais rápidas, diárias, sol forte e calor úmido de 30 a 35oC. Este clima, contribuiu para as grandes epidemias de febre amarela, cólera e malária no passado, principalmente durante a construção da ferrovia e do Canal que ligam os oceanos. “Cidade pestilenta”, diziam.
O Canal certamente é estratégico para a economia do país. Passamos um dia conhecendo-o em detalhes. Uma passagem entre dois oceanos! Um sonho de muitos séculos, realizado ao custo de milhares de vidas de trabalhadores de todas as partes do globo. Encontrar uma passagem do Atlântico para o Pacífico é um sonho antigo. Em 1513 o aventureiro espanhol Vasco Núñes de Balboa, na costa atlântica do que seria hoje o Panamá, soube dos nativos locais que não muito longe dali, rumo oeste, havia outro oceano. Curioso, cruzou as montanhas do centro da penísnula e no dia 25 de setembro daquele ano tornou-se o primeiro europeu a enxergar o Pacífico. A notícia se espalhou pela Europa e logo tentativas de encontrar um caminho navegável entre os dois oceanos foram feitas. Em 1520, o português Fernão de Magalhães, a serviço da coroa espanhola, descobriu uma passagem no extremo sul do continente americano. Mas a viagem por ali era muito longa e arriscada, levando a que se propusesse uma abertura artificial entre os dois oceanos, onde as condições geográficas fossem as mais propícias. Nascia o sonho do canal.
E as melhores condições geográficas para a empreita estavam no Istmo do Panamá, a relativamente estreita porção de terra que liga a América do Sul à América do norte. Mais precisamente, o melhor lugar para construir o canal ficava na altura da Cidade do Panamá, onde a distância que separa os dois oceanos é de cerca de 80 quilômetros. Ao final do século XIX essa região se insurgiu contra a Colômbia, da qual fazia parte, e tornou-se um estado independente em 1903. Isto é, mais ou menos independente. Na luta pela independência os rebeldes panamenhos foram apoiados pelos Estados Unidos, que sonhavam em controlar economica e militarmente a passagem entre os dois oceanos. Os americanos afrontaram diplomática e militarmente a Colômbia, em troca da concessão panamenha para terminar a construção do canal (que havia sido iniciada por uma equipe francesa) e do arrendamento de uma faixa de terra ao seu redor. E foi o que aconteceu. Os Estados Unidos terminaram a construção do canal em 1913 e controlaram todo seu funcionamento desde então. Apenas no último dia do século XX o Panamá recuperou a soberania sobre o canal e seu território.
É nítida da presença americana na Zona do Canal; bairros inteiros, culinária, palavras faladas na rua, nomes de praças, monumentos… Até hoje a moeda local é o dolar americano. A obtenção da soberania sobre o canal aparentemente não melhorou a vida do panamenho comum. Ouve-se em todo lugar que a vida piorou depois que os “gringos” foram embora, não porque eles eram bons, mas porque o governo local é ainda pior.
Os trâmites para a liberação da ONÇA em Puerto Balboa demoraram dois dias. Vencida uma buro-corrupto-cracia infernal, ela finalmente saiu do “contenedor” ávida por novas aventuras. Caiu na Ruta Panamericana e zuniu rumo norte.
Começou enfim a etapa centro-americana de nossa viagem. Chovia torrencialmente quando deixamos o porto. Entramos pelo “interiorzão” do Panamá. Rodamos muito naquele dia. A paisagem continuou a mesma, mata tropical úmida, planície, um calor de 39 graus centígrados, amenizado apenas por pancadas de chuvas fortes e rápidas. Mas a paisagem social mudou radicalmente. Os shopings centers sofisticados e os becos do centro alvejados de balas perdidas de favelas adjacentes ficaram para trás. Por aqui, pequenas cidades do interior, movimentadas por gente andando em bicicletas, em lombo de burros, em ônibus lotados pelas ruas sombreadas e estradas estreitas.
Paramos em Santiago de Verágua, apenas para dormir, em um hotel muito conveniente à beira da Ruta Panamericana. Aproveitamos para arrumar a caçamba, reorganizar a bagagem e deixar tudo pronto para essa nova etapa da viagem. Tomamos cerveja local e jantamos peixe no restaurante do hotel, servido por senhoras idosas e bem humoradas. No dia seguinte continuamos subindo a Panamericana e cruzamos a fronteira com a Costa Rica em Paso Canoa.